O pistoleiro - Stephen King

Jake Chambers — às vezes Bama — está descendo as escadas com sua mochila. Leva um livro chamado Ciência da Terra, outro, Geografia, um bloco de notas, um lápis, um lanche que a senhora Greta Shaw, cozinheira da mãe, preparou para ele na cozinha de fórmica cromada onde um exaustor zumbe eternamente, sugando odores estranhos. Na lancheira leva manteiga de amendoim, um pão com geléia, um cachorro-quente com alface e cebola, e quatro biscoitos Oreo. Os pais não têm raiva dele, mas parece que já o ignoram. Abdicaram dele e o entregaram à senhora Greta Shaw, às babás, a um professor particular no verão e ao Colégio Piper (que é Bom e Particular e, principalmente, Branco) no resto do tempo. Nenhuma dessas entidades jamais fingiu ser mais do que é — profissional, a melhor de cada área. Ninguém o envolveu num abraço particularmente afetuoso, como costuma acontecer nos romances históricos que a mãe lê e em que Jake dá uma olhada, procurando os “trechos picantes”. Romances histéricos, como o pai às vezes os chama, ou “rasga-espartilhos”. Tinha de falar alguma coisa, diz a mãe com infinito desprezo atrás de alguma porta fechada onde Jake escuta. O pai trabalha para A Rede e Jake poderia reconhecê-lo numa fila de homens magros com cabelos cortados a máquina um. Provavelmente.
Jake não sabe que odeia todos os profissionais, com exceção da senhora Shaw. As pessoas sempre o desnortearam. Sua mãe, que é muito magra, mas de um modo sensual, vai frequentemente para a cama com amigos doentios. O pai às vezes também fala de pessoas da Rede que estão tomando “Coca-Cola demais”. Esta declaração é sempre acompanhada por um sorriso amarelo e uma rápida e pequena cheirada da unha do polegar.
Agora ele está na rua, Jake Chambers está na rua, “pulou a cerca”. Tem boa aparência e boas maneiras, é sério e sensível. Joga boliche uma vez por semana no Mid-Town Lanes. Não tem amigos, só conhecidos. Nunca se preocupou em pensar no assunto, mas a coisa o magoa. Não sabe nem compreende que uma longa associação com profissionais fez com que assumisse muitos de seus traços. A senhora Greta Shaw (a melhor de todos, o que, puxa!, é ao menos um prêmio de consolação) faz sanduíches muito profissionais. Corta-os em quatro partes e retira a casca do pão, de modo que, quando ele come no recreio das quatro horas, tem a sensação de estar num coquetel com um drinque na outra mão, em vez de um almanaque de esportes ou um faroeste de Clay Blaisdell tirado da biblioteca da escola. O pai ganha muito dinheiro porque é um mestre do “jogo mortal”— isto é, colocar um show mais forte em sua Rede contra um show mais fraco numa Rede rival. O pai fuma quatro maços de cigarros, por dia. O pai não tosse, mas tem um sorriso duro, e não é refratário à dose ocasional da velha Coca-Cola.
Seguindo a rua. Sua mãe deixa o dinheiro do táxi, mas ele caminha sempre que não está chovendo, sacudindo a mochila (e às vezes a sacola de boliche, embora quase sempre a deixe em seu armário). É um rapazinho que parece bem americano com o cabelo louro e os olhos azuis. As garotas já começaram a reparar (com a aprovação das mães) e ele não vira a cara com aquela arrogância volúvel de garoto novo. Fala com elas com involuntário profissionalismo e elas partem confusas. Gosta de geografia e do boliche à tarde. O pai tem ações de uma empresa que fabrica o mecanismo que levanta automaticamente as garrafinhas, mas a Mid-Town Lanes não usa a marca do pai. Ele acha que nunca se importou com isso, mas se importou.
Descendo a rua, passa pela Bloomies, onde há manequins com casacos de pele, outros com conjuntos Edwardian de seis botões e alguns sem nada, nuzinhos em pêlo. Esses manequins — esses modelos — são perfeitamente profissionais e ele detesta todo profissionalismo. É jovem demais para já ter aprendido a detestar a si mesmo, mas a semente está lá; com o tempo, vai crescer e produzir seu fruto amargo.
Chega à esquina e pára, segurando a mochila com uma das mãos. O tráfego passa roncando: barulhentos ônibus azuis e bran-cos, táxis amarelos, Volkswagem, um caminhão grande. E apenas um garoto, mas não um garoto qualquer, e vê o homem que o mata pelo canto do olho. É o homem de preto, e não dá para ver o rosto, só a pelerine que rodopia, as mãos estendidas e o sorriso duro, profissional. Cai na rua com os braços esticados, mas sem largar a mochila que contém o lanche extremamente profissional da senhora Greta Shaw. Dá uma breve olhada, através de um pára-brisa polarizado, no rosto horrorizado de um homem de negócios que usa um chapéu azul-escuro com uma peninha vistosa presa na aba. Em algum lugar, um rádio explode com rock-and-roll. Uma senhora idosa no meio-fio oposto dá um grito — ela está usando um chapéu preto com uma rede. Nada há de vistoso naquela rede negra; lembra um véu de acompanhante de enterro. Jake só sente surpresa e experimenta sua habitual sensação de intensa perplexidade — é assim que a coisa termina? Antes de conseguir fazer mais que 270 pontos no boliche? Bate com força no asfalto, vendo um buraco tapado a uns cinco centímetros dos olhos. A mochila é puxada de sua mão. Está se perguntando se esfolou os joelhos quando o carro do homem de negócios, que usa o chapéu azul com a pena vistosa, passa por cima dele. É um grande Cadillac 1976 azul, com pneus Firestone de banda branca. O carro é quase exatamente da mesma cor que o chapéu do homem de negócios. Quebra as costas de Jake, prepara um molho de suas tripas e faz o sangue lhe sair da boca como um jato de alta pressão. Jake vira a cabeça e vê as flamejantes lanternas traseiras do Cadillac e a fumaça brotando embaixo das rodas recém-freadas. O carro também atropelara sua mochila, deixando sobre ela uma larga marca negra de pneus. Vira a cabeça para o outro lado e vê um grande Ford cinzento com os freios cantando a centímetros do seu corpo. Um sujeito negro, que tem um carrinho que vende rosquinhas e refrigerantes, vem correndo em sua direção. O sangue escorre do nariz, orelhas, olhos e ânus de Jake. Seus genitais foram esmagados. Ele se pergunta, irritado, se os joelhos tinham ficado muito esfolados. Acha que pode chegar atrasado à escola. Agora o motorista do Cadillac vem correndo em sua direção, balbuciando alguma coisa. Vinda de algum lugar, uma voz calma, terrível, a voz do juízo final diz:
— Sou padre. Me deixem passar. Um Ato de Contrição...
Vê a batina preta e experimenta um súbito horror. É ele, o homem de preto. Jake vira a cara com a última de suas forças. Em algum lugar, um rádio está tocando uma música do Kiss, o grupo de rock. Vê sua própria mão se arrastando na calçada, pequena, branca, bem proporcionada. Ele nunca roeu as unhas.
Olhando para sua mão, Jake morre.

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